Em julho de 2006, a Sadia fez uma oferta pública voluntária para comprar o controle da concorrente Perdigão. Se aceita, a proposta resultaria, àquela época, na maior fusão no setor corporativo brasileiro desde a criação da AmBev, fruto da compra da Antarctica pela Brahma, em 1999. No entanto, essa tentativa de “aquisição hostil” não foi bem-sucedida de imediato, uma vez que a oferta foi recusada por acionistas que representavam 55,38% do capital da Perdigão.
Quase três anos depois desta primeira oferta fracassada, em maio de 2009, foi assinado o acordo de fusão que criou a gigante da indústria alimentícia nacional Brasil Foods (BRF). Passado pouco tempo da conclusão das negociações entre as duas empresas, descobriu-se que três executivos envolvidos na operação teriam feito uso das informações a que tiveram acesso em benefício próprio, caracterizando o crime de “insider trading”, previsto no artigo 27-D da lei 6.385/1976.
A legislação em vigor está fundamentada em princípios éticos que obrigam os executivos de empresas abertas ou as instituições que as assessoram a manter sigilo até o momento em que informações que podem afetar o mercado sejam divulgadas como fatos relevantes. O uso de informações privilegiadas, para operações vantajosas no mercado de capitais ou de ações, é considerado crime desde a publicação da lei 10.303/2001, que alterou a Lei das Sociedades Anônimas e a do Mercado de Capitais.
Recentemente, foi destaque notícia sobre a condenação penal de dois ex-executivos da Sadia por prática de insider trading, em sentença proferida pelo juiz Marcelo Costenaro Cavali, da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, especializada em crimes financeiros e lavagem de dinheiro. A decisão, inédita, foi considerada um marco histórico no mercado brasileiro porque até então a prática, ainda que comprovada, não passava da esfera administrativa da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e as sanções se limitavam a multas, diferentemente do que ocorre nos mercados internacionais, em que crimes dessa natureza são punidos com severidade.
O ex-diretor de Finanças e Relações com o Mercado da Sadia, L.G.M.J., foi condenado ao pagamento de multa no valor de R$ 349.711,53 e à pena de um ano e nove meses de prisão, convertida em prestação de serviços comunitários, e foi proibido de exercer cargo de administrador ou conselheiro em companhia aberta pelo mesmo prazo. Já R.A.F.F., ex-integrante do conselho de administração da Sadia, recebeu multa de R$ 374.940,52 e pena de um ano, cinco meses e quinze dias de reclusão, também convertida para prestação de serviços à comunidade, e está proibido de exercer função semelhante pelo período equivalente ao da pena.
Segundo a decisão, os valores relativos às penas de multa serão revertidos para a CVM, a qual deverá destinar a quantia à realização de campanhas para “conscientização dos investidores sobre os malefícios da prática do insider trading”.

L.G.M.J. e R.A.F.F. participaram das discussões e tratativas para elaboração da oferta ao mercado, obtendo, em virtude das funções exercidas por ambos, informações relevantes. De acordo com a denúncia, o primeiro cometeu o crime duas vezes e segundo, quatro. Juntos, os dois executivos lucraram aproximadamente US$197 mil com as operações com papeis da Perdigão negociados na Bolsa de Valores de Nova Iorque.
A proposta foi aprovada pelo Conselho da Sadia em 7 de abril de 2006. Nesta ocasião L.G.M.J. realizou a primeira compra de ações da Perdigão na Bolsa de Nova Iorque – cerca de 15.300 ADR’s (american depositary receipts). Em junho, considerando a proximidade do anúncio do negócio, o ex-diretor adquiriu mais 30.600 ADR’s, totalizando 45.900 ações, cujo valor unitário correspondia a US$19,17. Segundo o processo, as compras foram feitas com base nos dados a que teve acesso durante a negociação.
Quando soube da desistência da Sadia na compra da concorrente, em 21 de julho daquele ano, L.G.M.J. aguardou a divulgação da decisão para o público e vendeu as ações, com lucro menor do que o esperado. A venda das ações não foi considerada crime pelo MPF, pois foi realizada depois que a revogação da oferta se tornou pública.
R.A.F.F. comprou três lotes de ações da Perdigão na Bolsa de Nova Iorque, no período de 5 a 12 de julho. Foi pago o valor de US$344.100 por 18.000 ações, vendidas de uma única vez no dia 21 de julho, mesma data da recusa da Perdigão. Como a venda ocorreu antes da publicação de desistência, o MPF a considerou uma quarta prática de insider trading.
A sanção estabelecida para L.G.M.J. foi mais rígida do que a que foi determinada para R.A.F.F., pois o ex-diretor fez uso de uma offshore para efetuar a compra das ações. Para o juiz Cavali, trata-se de uma evidência de “tentativa de ocultar das autoridades brasileiras a negociação realizada”. Além disso, outro fato que pesou na fixação de pena mais elevada foi a quebra do dever de sigilo, considerando a posição por ele ocupada (era um dos líderes do processo), como diretor de relações com investidores, deveria “proteger a companhia e o próprio mercado de condutas contrárias ao seu bom funcionamento”.
Em síntese, foi argumentado por ambas as defesas que os executivos já haviam sido punidos em âmbito administrativo pela SEC e pela CVM, o que tornava a acusação feita pelo MPF uma repetição. A defesa de L.G.M.J. requereu direito à suspensão condicional do processo, sob a justificativa de que o cliente teria cometido, no máximo, um crime de insider trading. A defesa de R.A.F.F., por sua vez, alegou que a Justiça Federal não teria competência para julgar este tipo de crime.
Tanto as preliminares quanto as questões de mérito, levantadas pelos advogados dos réus, foram rejeitadas por Cavali, o qual esclareceu que o uso de informações privilegiadas é crime, “vindo a sanção penal a se somar às já existentes regras de responsabilização civil e administrativa”, e que crimes contra o mercado de capitais constituem delitos contra o Sistema Financeiro, devendo ser processados não só pela Justiça Federal, como pelas Varas Especializadas em Crimes Financeiros e Lavagem de Dinheiro.
Para Alexandre Pinheiro, chefe da Procuradoria Federal Especializada da CVM, trata-se de um “divisor de águas" e “mostra que esse tipo de crime tem uma resposta estatal em todas as esferas (não apenas administrativa, mas também criminal)”. Para a CVM, a impressão de que a impunidade prevalece abala a confiança do público em relação ao mercado, especialmente os acionistas minoritários, que se sentem lesados.
Fonte: IBCCRIM
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