Até o fim do ano, um grupo formado por advogados criminalistas, juízes, procuradores e policiais federais deve concluir um anteprojeto para alterar a Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Liderado pelo criminalista e ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, o grupo formará um comitê para debater a legislação e propor alterações, que serão reunidas na proposta de alteração da lei.
A iniciativa surgiu durante o evento "O Estado Brasileiro e o Crime Organizado", promovido pelo Instituto Innovare em 10 de junho no Rio de Janeiro. Realizado a portas fechadas, o seminário reuniu os diferentes atores nos processos penais por crimes econômicos para debater formas de melhorar o combate ao crime organizado no Brasil. Os participantes discutiram casos concretos e alterações legislativas. De acordo com o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos, que presidiu a reunião como presidente do conselho do Innovare, um dos poucos consensos obtidos entre participantes com funções tão diversas foi o de que a Lei nº 7.492 - a Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional - está "absolutamente inadequada para combater o crime financeiro".
A Lei nº 7.492, que também ficou conhecida como "Lei do Colarinho Branco", começou a tramitar no Congresso Nacional em 1983, quando o então procurador-geral da República José Paulo Sepúlveda Pertence elaborou o Projeto de Lei nº 273. Na época, o país vivia um contexto econômico oposto ao atual, com um intenso movimento de fuga de capitais após vários anos consecutivos de atração de investimentos durante a década de 70. Ao mesmo tempo em que o Brasil havia reduzido sua dependência externa com o desenvolvimento industrial trazido pela internalização do setor de bens de capital e insumos, aumentou a vulnerabilidade da economia a eventos financeiros internacionais.
No início dos anos 80 foram feitos várias ajustes em políticas macroeconômicas para proteger o país de choques externos e conter o fluxo negativo de capitais. Foi nesse contexto, de necessidade de proteger o sistema financeiro de fraudes que poderiam comprometê-lo por inteiro e de evitar a evasão ilegal de divisas, que foi aprovada a legislação, em 1986. "A lei foi feita em outra época e já saiu inadequada", diz Thomaz Bastos, para quem ela é "um verdadeiro desastre e piora na medida em que a economia se abre".
Participantes do encontro ouvidos pelo Valor afirmam que a necessidade de atualizar a Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro foi praticamente consensual. "O cenário dos anos 80 levou a essa lei, mas, mudada a realidade do país nos últimos 25 anos, é preciso atualizá-la", diz Roberto Troncon Filho, superintendente regional da Polícia Federal em São Paulo. Mas, segundo ele, não houve consenso em relação aos artigos da legislação que necessitam de alterações.
Entre os pontos que chegaram a ser debatidos pelo grupo estão dois dos tipos penais da Lei nº 7.492: o crime de gestão temerária e o de gestão fraudulenta. O texto da lei estabelece que "gerir fraudulentamente instituição financeira" é crime sujeito à pena de reclusão de 3 a 12 anos e multa, e que "se a gestão é temerária", a pena é de reclusão de 2 a 8 anos e multa.
Duas das mais rumorosas condenações por gestão fraudulenta e gestão temerária envolvem, respectivamente, o ex-dono do Banco Marka, Salvatore Cacciola, hoje preso no Rio de Janeiro; e o ex-presidente do FonteCindam, Luiz Antônio Gonçalves, que ainda aguarda o julgamento de recursos nos tribunais superiores. Já Edemar Cid Ferreira, ex-controlador do falido Banco Santos, foi condenado em primeira instância a cinco crimes, entre eles o de gestão fraudulenta de instituição financeira. Ele aguarda o julgamento da apelação no Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região.
Embora a lei seja bastante utilizada, mesmo gerando poucas condenações, ela não traz definições sobre o que seria uma gestão temerária ou uma gestão fraudulenta. Na linguagem jurídica, é o que se chama de "tipos penais abertos". "Chegamos à conclusão que a lei tem dispositivos muito vagos e decidimos criar uma comissão para estudar o tema", afirma o advogado criminalista Paulo Freitas Ribeiro, que participou dos debates. "Às vezes se pune demais e às vezes de menos", diz Thomaz Bastos.
Para Roberto Troncon Filho, a gestão temerária é, de fato, um tipo penal que precisaria ser revisto. "Se um banco toma seu dinheiro e aplica em operações muito arriscadas, há dois efeitos: se ele dobrar seu capital, não é crime; se perdê-lo, é crime", diz. Segundo ele, a gestão temerária foi prevista para conter o exagero do sistema financeiro em operações arriscadas. "Mas é realmente um tipo penal muito aberto, que precisa ser revisto", afirma. Troncon, no entanto, não concorda com alterações no crime de gestão fraudulenta, pois a simples existência de fraude - como maquiagem de balanços - já é suficiente para caracterizá-lo.
O juiz Sérgio Moro, titular da 2ª Vara Criminal da Justiça Federal do Paraná que esteve à frente dos processos gerados pelas investigações sobre crimes financeiros no Banestado, concorda com alterações pontuais tanto na questão da gestão fraudulenta como na da gestão temerária. Mas teme pelo excesso. "Quando se fala em revisão da lei é preciso tomar cuidado para evitar a descriminalização de algumas condutas."
Uma dessas condutas, que deve ser alvo de debates acirrados na comissão que vai elaborar o anteprojeto de reforma da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, é a evasão de divisas, ou seja, o envio de recursos para fora do país por meio de operações de câmbio ilegal. Alguns criminalistas defendem que a evasão deixe de ser crime e passe a ser apenas um ilícito civil. No entanto, a proposta enfrenta resistências. "Não entendo em que a descriminalização da evasão poderia gerar ganhos para o Estado", diz. "Hoje as pessoas só não enviam recursos ao exterior legalmente quando o dinheiro tem origem ilícita."
Fonte: AASP